As transações de M&A muitas vezes se assemelham às transações em bolsa: como regra básica o valor das ações (equity) das empresas é determinada pela seguinte equação: Valor das Ações = Valor da Companhia (-) Endividamento Líquido.
Mas enquanto uma ordem em bolsa é fechada e escriturada quase que instantaneamente, uma transação de M&A exige um hiato entre a formalização de um negócio e o momento do fechamento desse deal devido a diversos motivos, incluindo: (i) a necessidade de coleta de aprovações regulatórias (Cade e outras entidades regulatórias de cada setor), (ii) a coleta de aprovações societárias e/ou de credores e (iii) outras condições específicas a serem executadas antes do fechamento, como um spin-off ou uma reorganização societária.
Esse vácuo — que pode tomar algumas semanas ou até alguns meses —, entre a assinatura do acordo e o fechamento da transação demanda uma série de cuidados a serem tomados pelos negociadores.
Nas transações de M&A, o preço de aquisição é usualmente estruturado sob a filosofia “debt free, cash free basis”. Isto significa que o preço é ajustado para qualquer diferença entre os saldos de dívida e de disponibilidades previstos na assinatura e aqueles confirmados com base na data do fechamento. Com dívidas reduzindo o preço e o saldo caixa tendo o efeito oposto.
Mas qual o tratamento para o saldo de contas a receber de clientes? E o saldo de estoques? E o saldo de contas a pagar com fornecedores, tributos e pessoas? O Ajuste de Capital de Giro é negociado para equilibrar esses interesses.
Do ponto de vista contábil, o capital de giro pode ser definido de forma bem direta: é o saldo de ativos circulantes menos o saldo de passivos circulantes. Posto de forma mais prática, é o resumo de tudo que a empresa tem de direitos deduzindo todas as obrigações de curto prazo (aliás, contabilmente, curto prazo se resume ao horizonte de até um ano da data em análise).
Da perspectiva do comprador, é importante que: (i) o negócio adquirido mantenha um saldo mínimo de capital de giro até o fechamento do negócio, especialmente para cobrir desembolsos no curto prazo e (ii) garantir que o comprador não tenha que pagar o preço do negócio e ainda ter que prover financiamento adicional (e imprevisto) para suportar o negócio.
Da perspectiva do vendedor, é relevante que: (i) eventuais excessos de capital de giro não sejam entregues “de graça” para os compradores e (ii) que os efeitos pontuais (ou não recorrentes), especialmente que consumam caixa, sejam analisados adequadamente.
O formato mais usual para negociar o capital de giro é definir um “baseline” previsto para o fechamento e ajustar o preço para variações acima ou abaixo desta previsão. Ou seja, as partes negociam um saldo previsto de capital de giro a ser verificado na data do fechamento (muitas vezes com um limite de tolerância), após o fechamento esses saldos são auditados e qualquer variação entre o saldo verificado e o do baseline geram um ajuste de preço (aumenta o preço se o saldo exceder o baseline ou reduz o preço em caso de o saldo auditado ficar abaixo do previsto). Parece simples, não?
Mas é nos detalhes que as coisas podem se complicar e exigir mais atenção dos negociadores. Alguns exemplos típicos de pontos a serem observados são:
Importante garantir que cada termo seja definido e exemplificado de forma antecipada. Uma boa prática é formar um anexo aos contratos, com exemplos de aplicação das regras negociadas. Outra recomendação é avaliar seletivamente a inclusão de um limite (cap) de variação para alguns dos saldos que compõem o capital de giro.
Uma maneira menos usual para negociar ajustes de preço ligados a capital de giro é simplesmente não negociar. Ou seja, o saldo que estiver na data do fechamento vai ser aceito por ambos os lados (desde que respeitadas as declarações cedidas pelos vendedores, de continuidade dos negócios e diligência na gestão, claro). Esse método, por vezes, é englobado no jargão “porteira fechada”, em que o objeto da transação é entregue ao comprador no estado que está na data do fechamento, com todos os seus riscos e oportunidades, sem ajustes futuros de preço.
Por mais estranho e arriscado que pareça, esse método é comumente usado em aquisições de empresas listadas, pois ajustes de variações de endividamento líquido e capital de giro já estão, em tese, precificados na cotação das ações e usualmente empresas listadas já seguem um rigor contábil mais adequado (premissa desafiadora, é verdade, mas vamos tratar desse assunto em outro artigo).
O tratamento de capital de giro sempre demanda boas horas de discussões e negociações. Por vezes, até nossos próprios clientes (que aliás operam o negócio diariamente) se confundem em definir a melhor forma de lidar com o assunto. Minha recomendação aos empresários é contar sempre com os melhores assessores, que já tenham negociado diversos modelos, para ajudá-los nessa discussão. Não é raro vermos nos noticiários compradores e vendedores se digladiando após o fechamento do negócio, querendo renegociar os termos que não foram adequadamente previstos antes. No momento atual, num cenário econômico desafiador, esses embates tendem a aumentar ainda mais.
Se interessar a vocês, sigo esta série para passarmos por outros ajustes de preço em transações de M&A (incluindo o famigerado “earn-out”, garantias para riscos e contingências e superveniências ativas). Podemos também desafiar o pressuposto de que os analistas sejam racionais e de que os balanços são confiáveis. O que acham?
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